“Vocês ouviram que foi dito para amarem seu próximo e odiarem seu
inimigo. E eu digo, para vocês promoverem o amor para com seus inimigos,
abençoarem os que lhes maldizem, beneficiarem os que não gostam de vocês e
orarem pelos que lhes tratam mal; agindo assim, vocês se tornam filhos do Pai
celestial, que ao amanhecer serve aos bons e maus, e também faz chover sobre os
justos e os ímpios.” 1
Jesus, o Messias.
NA TEIA DAS RELAÇÕES FAMILIARES, tenho afirmado que a tragédia é fundamental para a solidificação dos
laços fraternos. Isso, porque, a tragédia gera obrigatoriamente o amor. Esse
amor se mostra muitas vezes na reestruturação da família, ou no fortalecimento
da afetividade. Outras vezes na profusão das lágrimas geradas pelo
arrependimento ou pelo remorso. É o amor que identifica a família, bem como
identifica a existência da tragédia. É ele que nos esfria a barriga quando
somos notificados que a tragédia chegou; é o amor que nos envolve numa
convulsão de lembranças e questionamentos quando a tragédia nos surpreende.
Não há família sem tragédia, não há tragédia sem amor, não há amor sem
família.
É o “eu te amo” que juramos no altar; é o “eu te amo” que
dizemos aos filhos quando nascem; é o “eu te amo” que declaramos no
reencontro com o familiar que retorna para casa. Na família, todos são um;
todos são reprodução – mas não réplicas – de uma matriz única e ao mesmo tempo
diferente. Precisamos olhar nossos familiares como nos olhamos, precisamos
ouvi-los como nos ouvimos, precisamos atendê-los como atendemos a nós,
precisamos amá-los como nos amamos. Para compreender o dito de Jesus, afirmando
que para sermos filhos de Deus, precisamos amar o nosso “outro”, é
necessária uma explicação do termo em questão, e isso Rabi Bonder faz muito
bem:
“Trata-se da possibilidade de se ler no hebraico original, em lugar de
‘próximo’ (lê-reecha), uma outra palavra de grafia idêntica e cujo significado
é ‘ruim’ (lê-raecha). A leitura da frase seria então: ‘Ama o teu ruim como a ti
mesmo.’
Aprender a amar o que há de ‘ruim’ em nós como parte de nós mesmos não é
uma apologia à complacência, à resignação ou à imperfeição. É um ato de
‘endorcismo’, de integração, sem o qual não há tolerância. Perceber que a
palavra ‘outro’ (próximo) tem a mesma raiz que a palavra ‘ruim’ é entender um
pouco de nossa psique. O que é diferente é automaticamente visto como ‘ruim’.
Verdadeiramente amar o ‘outro’ é tão difícil e violento como se propuséssemos
amar o ‘ruim’ ou o imperfeito. O exorcismo, o ato de querer excluir e erradicar
o ‘ruim’, significa verdadeiramente querer erradicar o ‘outro’. Como poderemos
tolerar os outros e amá-los, se não toleramos em nós o que é ‘outro’, o que é
fora de padrão e de expectativas?”. 2
A explicação do rabino mostra a profundidade sagrada do que está escrito
em hebraico. Na família, todos são um só, mas diferentes; “um” é o “outro”,
com tonalidades distintas, porém únicas. Todos são o mesmo sendo distintos.
Todas às vezes que um “outro” da família é o ator de uma tragédia, é em
nós que ele causa o mal estar. Esse desalojar de emoções, causado pelo “ruim”
de nós e externo a nós, mas paradoxalmente íntimo em nós, produz um profundo
senso de família. Amar esse “outro”, “ruim”, feio e grosseiro de
nós mesmos, como amamos a nós mesmos, é o segredo para fazermos das tragédias
verdadeiras bênçãos familiares.
Para ilustrar esta verdade. Conta-se que um rabino Ortodoxo, chamado Arieh
Levin 3, muito conhecido por seu trabalho de cuidar dos “outros”
de si, em cadeias, hospitais e guetos, certo dia voltou para casa às pressas
pois sua esposa não estava bem de saúde. Ao ser perguntado pelo médico o que
estava acontecendo com ela, ele teria respondido: “Doutor, nosso pé está
doendo muito”, ou ao pé da letra: “... o pé de minha esposa está doendo
em nós”. Seu amor pela esposa lhe fazia parte dela. Isso é transformar a
tragédia da dor em bênção de amor.
Mas o que é o amor? Como ele pode ser o fruto abençoante de uma tragédia?
Para entendermos o amor precisamos entender o casamento. Esse ajuntar de
vidas é fruto da tragédia individual de cada um dos cônjuges, que se manifesta
ao saírem dos lares materno-paternos para construírem outro lar, outra casa,
outra família. O estado de felicidade de “um” divide com a dor da perda
do “outro”, a responsabilidade por esse novo estado de vida; “... o
Rebe de Lubavitch ensinava que: ‘o amor significa não poder viver sem o seu
amado. É uma alma completando a outra. Na verdade, é a mesma alma em dois
corpos diferentes que se unem ...’” 4. Esse estado de completude
de “um” no “outro”, se manifesta na geração de filhos. Essa alma
que habita dois corpos passará a habitar outros corpos: filhos e filhas gerados
pelo ato físico dos amantes que se casam um no outro. Apesar dos muitos
enganos, esse é o significado correto: “dois” só podem voltar a ser “um”,
num filho.
Nos dias atuais, em que o conceito de família se homo afetiva e unissexualiza,
gerar filhos é ato improvável, mas não impossível. A família se realiza com a
presença de um terceiro ser que sela a relação das vidas que o geraram. No caso
dos homo afetivos a geração de filhos é intrínseca, é nativa da vontade de
continuar vivo na vida da geração seguinte. Claro que a religião não consegue
ver família além da cama, mas sei que o Misericordioso tem seus meios de
valoração da vida de cada um. Por entender que a exposição de meu entendimento
sobre o tema da homo afetividade não cabe neste texto, me dou o direito de
suprimir parte do que fora escrito com reticências (...). Manter o amor vivo é
a capacidade de amar uma vida estranha ao amante. Esse amar o estranho a nós é
o que cobre a “multidão de pecados” 5, sejam eles hetero ou
homo afetivos.
Mamãe Ruth dizia que “o amor se aprende”. Ela falava do alto de
sua tranquilidade que o amor era um sentimento que deveria ser aprendido pelo
casal de amantes. Além de ser a capacidade de se dar ao outro de nós, o amor
também é o apreender praticante de cinco qualidades fundamentais a todos os
membros da família.
Contam os sábios judeus:
“Rabi Yochanan ben Zacai reuniu seus discípulos mais notáveis e
pediu-lhes que saíssem pelo mundo e descobrissem as qualidades mais importantes
que alguém deveria se esforçar para possuir, qualidades que lhe permitissem
viver uma vida com propósito e significado. As conclusões que os discípulos
chegaram foram as seguintes: desenvolver um bom olho, encontrar e tornar-se um
bom amigo, ser um bom vizinho, antever o futuro tendo como base as próprias
ações e adquirir um bom coração.” 6.
Só podemos constituir família e amar nosso “outro”, se essas cinco
qualidades estiverem presentes. Ter um bom olho, ser um bom amigo, ser um bom
vizinho, viver o momento presente com responsabilidade e desenvolver um bom
coração, são atitudes primordiais para que nossas relações familiares sejam
abençoadas quando as tragédias chegarem. Quero apresentar uma pequena definição
dessas cinco qualidades.
UM BOM OLHO
Para desenvolvermos um bom olho, precisamos perceber a vida sempre de
duas formas. Essas situações podem ser entendidas por nós como bênção ou
maldição, como luz ou trevas. Podemos ver a vida com um bom olhar ou com um mau
olhar. O modo de olhar a vida é uma escolha, essa escolha determinará nossa
forma de viver. Podemos nos tornar gentis ou amargos, pacientes ou coléricos,
generosos ou mesquinhos, contentes ou infelizes, cordiais ou mal-humorados,
afetuosos ou críticos. Tudo depende da forma que olhamos a vida. Para
desenvolvermos um bom olho, precisamos ver os dois lados das situações, pois
tudo na vida tem duas formas de ser observado.
Nas relações familiares essa qualidade é primordial, precisamos sempre
desse bom olhar para com nossos parentes, temos sempre de olhar as
atitudes de nossos familiares – e até as nossas – de forma generosa, bondosa,
iluminada. Se não fizermos isso, iremos naturalmente enxergar somente os erros,
as atitudes negativas, nos afastaremos dos elogios, das palavras doces que
constroem e fortalecem as relações. Jesus alerta para a importância do olhar
generoso. Em Mateus ele diz: “O olho é a lâmpada do corpo.’ Portanto, se
você tiver um ‘olho bom’, todo o seu corpo estará repleto de luz; mas, se você
tiver um ‘olho mau’, todo o seu corpo estará repleto de escuridão. Se a luz que
estiver em você for escuridão, quão terrível será essa escuridão!”. 7
A segunda atitude que qualifica nosso sentimento familiar é ser um bom amigo.
SER UM BOM AMIGO
Do hebraico, amigo tem sua origem no termo conectado, unido, junto. O
amigo é aquele que sempre está junto, sempre está unido, sempre está conectado
ao outro, ao familiar, ao ser amado. Parentes conectados formam uma família.
Infelizmente as intransigências têm produzido mais amigos fora da família que
dentro dela. Pais não são amigos dos filhos; filhos não fazem dos pais seus
amigos; irmãos da mesma forma; muitas vezes nem marido e mulher são amigos.
Quando não há união entre os parentes, quando não há amizade, quando não há
conexão; não há amor. Não há família.
Para sermos bons amigos dentro de casa, temos de deixar de lado o
instinto de criticar, de repelir, de “concertar”, de repreender, de só
falar e nunca ouvir, de achar que os outros sempre estão errados, de controlar,
de dominar. O que impede que os familiares sejam bons amigos é a arrogância, a
prepotência, a forma desrespeitosa de tratar as questões do “outro”.
Exercitar essa qualidade do amor nos faz mais unidos, mais juntos, mais
conectados. Além de olhar com bondade e sermos bons amigos, precisamos ser bons
vizinhos.
UM BOM VIZINHO
O bom vizinho é aquele que vive “o que é meu é teu, o que é teu é teu.”
8. Essa atitude de benevolência vem da raiz do termo “shachen” – “vizinho”,
em hebraico. Essa raiz tem a ver com “Shechiná” – Glória de Deus. Um bom
vizinho representa a Glória de Deus que socorre, que ajuda, que auxilia, que
ampara, que consola. A família precisa ser formada de bons vizinhos, de bons
amigos, de vizinhos que olhem com bons olhos. Ser um bom vizinho é olhar com
respeito, é ver o outro com carinho, é estar sempre pronto a ajudar quando for
necessário. Os bons vizinhos não se intrometem na vida do outro, não ficam
bisbilhotando as coisas, não ficam querendo saber o que não lhes cabe. Um bom
vizinho respeita a individualidade, respeita os “muros” e as “cercas”
que separam uma vida da outra. Uma família construída sobre a rocha é aquela
que tem vizinhos que são bons amigos por olharem com bondade uns para os
outros. Quando essas três qualidades são postas em prática, uma quarta
qualidade se manifesta naturalmente.
ANTEVENDO O FUTURO
Antever o futuro, tendo como base as atitudes do “agora”, é qualidade
que nasce naturalmente da união das três qualidades anteriores. Olhar com
bondade só é possível aos bons amigos, que por sua vez também são bons
vizinhos. Quando as três qualidades anteriores estão presentes nas relações
familiares, as palavras ásperas são contidas, os gestos ofensivos são evitados,
os comportamentos agressivos são rejeitados. Isso acontece porque sabemos o que
nosso ente querido vai sentir se falarmos ou fizermos algo que lhe ofenda. Mais
uma vez Jesus nos aconselha: “Sempre tratem os outros como vocês gostariam
de ser tratados; pois isso resume o ensino da Torah e dos Profetas.” 9.
Distante de ser um conselho para as relações interpessoais externas à família,
essa ordem é para os membros da família em primeiro lugar.
Nossas ações irão gerar reações em nossos familiares. Se formos
grosseiros receberemos frieza, se formos respeitosos, receberemos carinho.
Muitas vezes tratamos nossos filhos ou nossos pais – já idosos – com muita
aspereza, achando que “eles não têm motivo para se sentirem assim”; mas “nós
temos”. Isso me faz lembrar o trecho de uma canção do cantor Leone que diz:
“... porque é que a gente se espanta, com qualquer preconceito dos outros.
Mas no nosso caso sempre é diferente; a gente só quer defender a cultura, a
moral e o bom gosto...”.10
Nossa forma bondosa de olhar os familiares nos faz amigos uns dos outros,
nos permite ser bons vizinhos, sem invadir o “quintal” alheio, pois
sabemos que eles fariam o mesmo por nós. Isso é plantar semente de união, isso
é antever o futuro tendo como base nossas ações presentes. Mas nada disso é
possível sem um bom coração.
UM BOM CORAÇÃO
As quatro qualidades do amor e da relação familiar amorosa, só são
possíveis quando provenientes de um bom coração. É com os olhos de um coração
bondoso que vemos sempre o melhor dos outros; é a fraternidade que nasce do bom
coração, que nos leva ao sacrifício – se for necessário – para mantermos a todo
custo à paz dentro de casa; é de um coração bondoso que vem o respeito pela
intimidade do outro; é dentro desse coração bondoso que está o entendimento
sólido de que o outro é igual a mim, então, o que eu quero pra mim eu quero
para ele. Não há bom olho sem um bom coração; não podemos ser bons amigos nem
bons vizinhos sem termos um bom coração; não podemos antever nada se não
olharmos o outro com o coração.
São essas cinco qualidades que definem o amor. Sem elas não há amor. São
essas qualidades que nos permitem transformar tragédias em bênçãos. Tragédias
são tragédias, mas olhá-las com um bom olho, nos dá coragem para ser bons
amigos; tragédias sempre serão tragédias, mas se formos amigos, respeitaremos
os limites sem invadir a privacidade alheia; tragédias sempre serão tragédias,
mas saber que nossas reações a elas podem transformar seus efeitos, muda tudo.
Tragédias são tragédias, mas suas sementes não podem germinar nas terras de um
bom coração. Somente um bom coração pode transformar água em vinho, tragédia em
bênção.
Amar àqueles que proporcionam tragédias em nossas vidas é ato divino, mas
completamente possível, pois somos imagem do Criador. Não querer amar àqueles
que nos proporcionam as tragédias, é apagar de nós as características Divinas
sopradas pelo Eterno. O primeiro episódio escrito de “dar o dízimo”
registra isso: a família que sofre uma tragédia, e a tragédia que se transforma
em bênção. Entender a verdadeira razão de praticar o dízimo muda totalmente
nosso comportamento em relação à família.
***
Notas – É preciso amar o “outro” agora. O
amanhã ainda não existe.
1. Tradução livre do autor, do texto em hebraico de Mateus 5:43 a 45.
2. Nilton Bonder, Fronteiras da Inteligência, Senso de bondade, ps.184-185.
3. Rabino Aryeh Levin. Março 22, 1885 - Março 28, 1969.
4. Definição judaica de amor.
http://www.morasha.com.br/conteudo/artigos/artigos_view.asp?a=910&p=4.
5. I Pedro 4:8.
6. Ética dos Pais 2:13 - Sidur Completo com tradução e transliteração.
Jairo Fridlin. Editora Sêfer, 1997. p.426.
7. Mateus 6:22-23.
8. “Há quatro tipos [de caráter] entre os homens, o que diz “o que é meu é
teu, e o que é teu é meu”, é ignorante; [o que diz] “o que é meu é meu, e o que
é teu é teu”, esta é uma característica intermediária; e alguns dizem que esta
é uma característica [do povo] de Sidom; [o que diz] “o que é meu é teu, e o
que é teu é teu” é um chassid; [o que diz] “o que é teu é meu, e o que é meu é
meu” é um perverso.” - A Ética dos Pais 5.14 -
http://www.pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/1090312/jewish/tica-dos-Pais-Captulo-5.htm.
9. Mateus 7:12.
10. Carlos Leoni, “As coisas não caem do céu”. 2013.
Abreviações
BACF - Bíblia Almeida Corrigida e Fiel; BJC
- Bíblia Judaica Completa; BH - Bíblia Hebraica; BNVI - Bíblia
Nova Versão Internacional; ES - Escrituras Sagradas; BEP - Bíblia
Edição Pastoral
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