"Sempre fomos livres nas profundezas de nosso coração, totalmente livres, homens e mulheres.
Fomos escravos no mundo externo, mas homens e mulheres livres em nossa alma e espírito."
Maharal de Praga (1525-1609)

Enfrentando as tragédias.


Não há família sem tragédia; não há tragédia sem bênção; não há bênção sem dízimo; não há dízimo sem família.


Na literatura que trata sobre dízimo, um ponto é comum: Abraão também é o “pai do dízimo”. Consagra-se ao patriarca das famílias da Terra o ato primordial de ter dado o dízimo. Porém a leitura meramente doutrinária, fez daquele ato uma fria obrigação religiosa, somente por constar no texto sua entrega a um sacerdote. Infelizmente a falta de entendimento da reação abraâmica gerou nos ignorantes dos tempos posteriores, atos de exploração e estelionato, práticas em nada relacionadas ao sentimento que motivou o primeiro dízimo. Pouco ou quase nada se fala sobre as emoções de Abraão naquele encontro histórico em que ele retribuiu a misericórdia de Deus, dando sua parte da dízima a um rei bondoso.

O motivo para Abraão ter encontrado com Melketzedek naquele momento, foi por estar vindo de uma guerra. Guerra contra as pessoas que haviam conquistado as cidades da planície do Jordão, onde morava seu sobrinho Ló. Isso está claro a todos que leem minimamente a história do patriarca Abraão, no livro de Gênesis1. Porém o fato que promove o dízimo é uma tragédia. Diz a Bíblia, que Abraão e Ló se tornaram muito ricos a ponto de não poderem viver juntos 2; mas não foram os bens que impediram a família de continuar unida, foi a contaminação moral e espiritual de Ló. Essa contaminação se expressa na história do sobrinho de Abraão como uma profunda falta de senso familiar. É possível perceber no texto, que Ló e seus empregados arengaram com os habitantes locais e com os empregados de seu tio, fazendo com que o pacífico Abraão tivesse que parar a arenga, oferecendo a separação familiar ao sobrinho. Toda partida de um membro da família é uma traição, uma ruptura, uma tragédia, mesmo que seja para “alargar as tendas”. Partir sempre será uma tragédia.

O chamado de Deus a Abraão, também pode ser entendido como uma tragédia: “Deixa tua família e constitui outra família...”, “Deixa teus valores, tua cultura e torna-te referência de novos valores e nova cultura...”. Um convite à mudança depois do falecimento de Terá, seu pai. Nesse novo e trágico momento, era uma desavença que separava a família de Abraão. O coração generoso do pai primordial abriu-se feito um portal para deixar sair o sobrinho briguento, abriu-se na direção do melhor lugar que os olhos podiam enxergar: As planícies do Jordão.

A cobiça foi o motivo que levou Ló a separar a família. Porém o mesmo sentimento de cobiça habitava o coração das pessoas daquele lugar. Menos generosos que seu tio, aqueles vizinhos maus trataram logo de impor a conquista e o domínio pela força – “O que é meu é meu, e o que é teu é meu.” 3 Conquistados, Ló e sua família tornaram-se escravos. Sem liberdade, sem pátria, sem nada. Tudo o que ganharam do bondoso tio perderam para os malvados vizinhos.

Porém o texto bíblico diz, que quando Abraão tomou conhecimento do que havia ocorrido com seu sobrinho, partiu imediatamente com seus homens para libertá-lo. Sua família estava em perigo. Fica claro que Abraão não guardou rancor do sobrinho, mesmo tendo sofrido com a separação, mesmo tendo sido tratado com desrespeito. Aquele homem que possuía valores divinos partiu em defesa de sua família, mesmo que ela o tivesse deixado, mesmo que ela o tivesse traído, mesmo que ela o tivesse abandonado. A atitude do patriarca mostra a todos nós o valor da família. A todo custo devemos defender nossos familiares, mesmo que eles sejam briguentos, arenguentos, ou ainda, resolvam nos trair ou nos deixar. Nunca devemos abandoná-los; não podemos perder o senso de família que há dentro de nós e que nos santifica. Foi por isso que Abraão lutou contra um número maior de opositores e os venceu. Lutar pela família sempre nos levará à vitória, não importa quem sejam os inimigos.

Naquele retorno ao lar, depois de ter pelejado e vencido, foi que Abraão e sua família se encontraram com o rei de Salém. Um rei sacerdote que acudiu uma família exausta, cansada e necessitada de amparo. Pão e vinho foram oferecidos pelo rei ao grupo de familiares guerreiros. Abraão e seus homens, além dos reis que surgem posteriormente no texto 4, estavam exaustos, cansados de uma noite inteira de lutas. Uma guerra pela liberdade da família. Naquele momento, naquele lugar, momento e lugar especiais, diferentes, separados na história, a sacralidade da família foi abençoada com pão e vinho pelo sacerdote de El-Elyon, o Deus Supremo.

“Bendito seja Avram pelo Elohim Supremo, o Possuidor dos céus e da terra; e bendito seja o Elohim Supremo, que entregou os teus inimigos nas tuas mãos.” 5

Nossos inimigos sempre serão aqueles que separam a família, todos que oprimem a família, todos que escravizam a família. Os inimigos que foram por Deus, entregues nas mãos daquele pai essencial, eram os inimigos de sua família.

Tendo sido abençoado pelo sacerdote do Deus Supremo, Abraão retribuiu bênção com bênção, dando ao rei sua parte na dízima. Tradicionalmente o texto que mostra esse episódio na vida de Abraão está vertido em linguagem ocidental da seguinte forma:

“E Melquisedeque, rei de Salém, trouxe pão e vinho; e era este sacerdote do Deus Altíssimo. E abençoou-o, e disse: Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo, o Possuidor dos céus e da terra; e bendito seja o Deus Altíssimo, que entregou os teus inimigos nas tuas mãos. E Abrão deu-lhe o dízimo de tudo.” 6

Porém, creio ser possível uma leitura menos religiosa e até menos doutrinária do texto original em hebraico, conforme apresento:

“O rei justo, que reinava sobre Salém, trouxe pão e vinho; ele era um sacerdote do Deus Superior que está nas alturas. Ele abençoou Abrão dizendo: Bendito seja Abrão pelo Deus Superior, possuidor do céu e da terra. Bendito seja Ele, que está ao teu lado como protetor. Então Abrão deu ao rei justo, toda a sua parte na dízima.” 7

Entender que a dádiva de Abraão ao rei de Salém, foi na verdade sua parte nos despojos de guerra pode tornar o entendimento daquele momento completamente diferente. Esse novo olhar sobre o ocorrido entre o hebreu Abraão e o rei de Salém muda a história do dízimo como a conhecemos e oferece um novo mote para as teologias. Essa nova interpretação do texto ganha sustentação, ao lermos no relato seguinte ao “episódio do dízimo”, que o rei de Sodoma – também libertado por Abraão –, lhe propôs uma nova partilha dos despojos:

“E o rei de Sodoma disse a Abrão: Dá-me a mim as pessoas, e os bens toma para ti. Abrão, porém, disse ao rei de Sodoma: Levantei minha mão ao SENHOR, o Deus Altíssimo, o Possuidor dos céus e da terra, jurando que desde um fio até à correia de um sapato, não tomarei coisa alguma de tudo o que é teu; para que não digas: Eu enriqueci a Abrão; salvo tão-somente o que os jovens comeram, e a parte que toca aos homens que comigo foram, Aner, Escol e Manre; estes que tomem a sua parte.” 8.

O texto também deixa claro, que a intenção de Abraão ao invadir Sodoma e Gomorra, – as principais cidades da planície do Jordão – foi somente para libertar sua família. O rei de Sodoma queria as pessoas que haviam sido libertadas com ele, e tentou comprá-las de Abraão. Segundo a força do texto original, a tentativa foi energicamente rejeitada pelo patriarca. O texto também deixa implícita a questão quanto ao destino dos familiares de Abraão. Para onde foram Ló e os seus? Com quem seguiu Ló? Voltou para casa com Abraão ou seguiu com o rei para Sodoma?

A cultura ocidental ensina que todas as ações libertárias, precisam necessariamente, receber uma paga, uma contrapartida. Isso é um contrassenso, já que a liberdade liberta de forma total, liberta inclusive do agente libertador. Liberdade que liberta de um opressor, mas prende o liberto ao seu libertador não é liberdade é liberalidade. A leitura não religiosa dos acontecimentos descritos no texto Sagrado, mostra toda a grandeza daquele que recebeu de Deus o título de “pai das nações da terra”. 9 Ele lutou pela liberdade de sua família – Ló e os seus – mas não os aprisionou consigo. Eles voltaram para Sodoma e só reaparecem tempos depois em um novo episódio de salvação.

Quando um membro de nossa família está prisioneiro de alguém ou de algo, o comportamento politicamente correto dos nossos dias é “deixar pra lá”, afinal “cada um que cuide de sua vida”. Se fizermos isso estamos praticando o desamor, a despreocupação, o descuidado; estaremos dizendo: “o problema é seu”. Mas não foi isso que Abraão fez, ele não foi politicamente correto, ele arrancou seu familiar das mãos do opressor.

Deveríamos ter a mesma coragem. Acredito que se esse cuidado familiar existisse, muitas mortes teriam sido evitadas, muitas vidas teriam sido poupadas, o desfecho fatal de algumas tragédias teria sido modificado. Resgatar nosso parente das mãos dos opressores não é deixar de ser um bom vizinho, é justamente o contrário. Invadir a “casa do valente” e “amarra-lo” 10, para resgatar nosso ente querido, é nossa obrigação como família. Essa é uma lição que Abraão nos deixou.

Outra lição do Patriarca que devemos apreender e por em prática é: todo ato de libertação gera um ato de gratidão. A libertação que Abraão proporcionou a Ló e aos cativos dos maus vizinhos foi seguida de um ato de gratidão equivalente. Tudo o que aquele guerreiro familiar havia conquistado na guerra libertária foi entregue ao sacerdote rei, para ser santificado e distribuído aos pobres e necessitados que passassem por ali. Ajudar aos transeuntes carentes era prática daquele rei de paz. Quando invadimos a “Sodoma” que aprisiona nosso ente querido, desrespeitando as convenções modernas e malditas do “deixa ele pra lá”, fortalecemos a família que há em nós. Quando agimos movidos pelo senso familiar somos invencíveis, indestrutíveis, podemos tudo no amor que nos fortalece.

A vitória contra os inimigos de nossa família, contra as “Sodomas” que prendem nossos familiares não nos dá o direito de substituir o cárcere, mantendo esses familiares junto de nós. Depois de libertar Ló, Abraão abriu mais uma vez os portais do seu coração para deixar o sobrinho livre para ir onde desejasse. Mesmo que esse desejo fosse voltar para o estado de cativeiro. E foi isso que aconteceu. Ló retornou para Sodoma porque era um sodomita, tudo que possuía era fruto da violência, inclusive sua liberdade. O generoso pai não mudou seu olhar, nem deixou de ser amigo, nem se tornou um mau vizinho. Ele se manteve firme, sendo generoso, sabendo que sua atitude presente mudaria o futuro da história do sobrinho. Seu bom coração não se amargurou com a escolha do sobrinho de voltar ao vômito. 11

Esse comportamento precisa ser exercitado por nós, em todos os momentos. Se entendermos que precisamos partir em defesa de nossa família prisioneira em alguma “Sodoma” moderna, devemos agir sem medo, sem hesitação. A vitória de Abraão é profética para todos os libertadores de família. Mas essa vitória deverá gerar uma gratidão proporcional, e a essa gratidão o texto sagrado dá o nome de dízimo.

Nem a vitória, nem a gratidão devem promover outra prisão. Tanto uma quanto outra, podem ser surpreendidas pela necessidade do sacrifício de ver nosso familiar voltar para “Sodoma”. Se isso acontecer, uma nova luta deverá ser travada, desta vez, contra o próprio Deus Supremo.

Olhar com bondade para o familiar sodomita é acreditar que “ele, desta vez pode mudar”; ser um bom amigo desse ente querido que retorna ao “vômito” é ir buscá-lo, levantá-lo, lavá-lo e fazê-lo dormir em nossa cama; ser um bom vizinho é acompanhá-lo pelos descaminhos, estando perto para protegê-lo; antever o futuro é acreditar que o Misericordioso agirá em favor de nossa família; ter um bom coração para com o parente teimoso que se sodomiza cada vez mais, é nunca perder a esperança na vitória abraâmica daqueles que lutam por amor à família.



***
Notas – Enfrentando as tragédias.
1. Gênesis capítulo 14.
2. Gênesis 13.7 a 12.
3. Ética dos Pais 5:14.
4. Gênesis 14:24.
5. Gênesis 14:20 - http://torahcaminhodevida.blogspot.com.br/2013_10_01_archive.html.
6. Gênesis 14:18 a 20 - BACF, Versão Digital 6.7, maio 2010.
7. Tradução livre do autor do texto de Gênesis 14:18 a 20.
8. Gênesis 14:21 a 24 - BACF, Versão Digital 6.7, maio 2010.
9. Gênesis 28.14.
10. Mateus 12:29.
11. II Pedro 2:22.

Abreviações
BACF - Bíblia Almeida Corrigida e Fiel; BJC - Bíblia Judaica Completa; BH - Bíblia Hebraica; BNVI - Bíblia Nova Versão Internacional; ES - Escrituras Sagradas; BEP - Bíblia Edição Pastoral


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