“Certo dia um goy (um não judeu), perguntou a um judeu. “O que é
mishpuche (família)? O judeu respondeu: “Você sabe o que é tsures (tragédia)? O
goy respondeu negativamente. O judeu então completou: “Então você não pode
entender o que é mishpuche”.
Anedota Iídiche
FAMÍLIA É A MATERIALIZAÇÃO DO PRAZER de um ser se dar a outro ser. Ao longo dos séculos,
de termo que designava um “escravo doméstico”, passando pelas definições
de subordinação ao um senhor feudal ou governante 1, aos conceitos
modernos das famílias unissexuais, a intenção continua a mesma: materializar o
prazer que se sente ao entregar-se a outra pessoa. Mas essa materialização só
acontece com a geração de uma vida independente da nossa, no caso, os filhos.
Esses por sua vez deveriam ser ensinados a também gerarem filhos.
Multiplicar e encher a terra, é a primeira ordem Divina, ainda nos
primórdios da existência humana, seja ela adâmica ou darwiniana, não importa.
Multiplicar-se é: dividirmo-nos em outros de nós mesmos, com características
distintas e singulares de nós. Mas a geração de filhos, também se dá na
transferência por meio do ensino de valores morais, sociais, intelectuais e
afetivos. Gerados ou gestados, escolhidos ou herdados, esses filhos são a
expressão do nosso prazer. Essa doação prazerosa que gera vida em multiplicação
é entendida como família.
Família é o projeto do Criador para o ser humano ainda no início da
existência em um jardim mítico feito para o deleite, a segurança e o sustento
providos pelo Pai Eterno. Mas a multiplicação do ser só se efetivou fora do
berço paradisíaco, depois da saída do lar Paterno, predita pelo filho Adão
2, quando recebeu sua parte Eva como mulher. Essa partida é o ponto de
ruptura entre o singular que se divide em homem e mulher3, e o
plural que se multiplica em filhos 4. Ao sair da casa paterna o
embrião familiar se desenvolve no útero dessa independência divina, que gera
descendência igual e diferente, que vive e mata, que planta o corpo na terra e
parte protegido por Deus pelos caminhos de um jardim interno e existencial.
Esse antagonismo Divino, soprado na família primordial é duradouro, porque foi
soprado pelo Eterno. Essas tragédias que deram vida à família adâmica são
essencialmente as mesmas que formam todas as famílias da terra, até hoje.
A anedota iídiche é verdade insofismável. Da mesma forma que o prazer é
decorrente da dor, a família é decorrente de uma tragédia. Não podemos saber o
que é família sem entendermos o que é tragédia. Não existe possibilidade de
solidificarmos as relações entre os membros da família, sem o desassossego que
as tragédias nos proporcionam. São elas que unem e solidificam as relações. Mas
também não precisamos ficar correndo atrás de tragédias com a justificativa de
que elas podem nos aproximar. Isso é tolice. Essa busca voluntária e
desequilibrada pela tragédia é o que destrói a família porque mostra o
descompromisso com o corpo fraterno. As tragédias que solidificam as relações
familiares devem sempre nos surpreender, nos pegar desprevenidos, nos assustar
quando chegam. São esses acontecimentos tragicamente “casuais” que nos
empurram uns para os outros, nos envolvendo nos braços uns dos outros, nos
lavando nas lágrimas uns dos outros, nos grudando uns nos outros.
Para que a família exista há a necessidade de doação, não podemos
constituir família, sem nos doarmos a alguém, que por sua vez, também se doará
a nós, para que juntos possamos promover a perpetuidade da nossa história. Sem
família estamos fadados ao inferno do esquecimento. Se morrermos filhos, nossa
história não se escreverá; se morrermos pais, teremos iniciado sua escrita; se
morrermos avós, teremos a certeza de que ela será contada. Ser família é ser
eterno; e essa eternidade se constrói quando geramos, gestamos, escolhemos ou
herdamos filhos que carreguem nossa semente – seja ela biológica, intelectual
ou emocional –, para plantar por onde forem. Quando somos família fazemos
história, e essa história se inicia quando “saímos de casa” para
escrever quem somos. Toda saída se dá porque haverá uma volta, só pode voltar
para casa, quem sai de casa; esse retorno a casa é a perpetuação dos valores da
casa materno-paterna. Essa partida do lar primordial é originada pelos
conflitos físico, intelectual e emocional, que nos espremem para que possamos
produzir o azeite que unge as relações familiares.
Simplificando: não há futuro físico, nem intelectual, nem emocional,
nenhuma história será contada sobre nós, sem a reprodução. Família é a unidade
que cria vida, é o mais poderoso agente de transmissão da memória coletiva.
Gerados pela mesma fonte seminal, e gestados no mesmo útero, somos três.
Nosso pai é Geraldo Dias da Rocha e nossa mãe – de abençoada memória – é Ruth
de Oliveira Rocha. Em algum momento da história, os avós deles, Judeus oriundos
de Portugal, se acomodaram em lugares diferentes no norte e nordeste do Brasil
e por motivos que somente o Senhor dos destinos sabe, conheceram-se e
constituíram família. Cristãos Novos, cresceram e multiplicaram, gerando filhos
e filhas. Em determinado momento, alguns filhos desses judeus cristãos,
converteram-se ao protestantismo e passaram a educar seus filhos da maneira que
julgavam ser a mais correta. É nesse ponto que se inicia a história de mamãe
Ruth e papai Geraldo.
Em nossa família as tragédias sempre estiveram presentes, fossem na forma
de graves acidentes, fossem na forma de separações, mas isso nunca nos
distanciou; nunca deixamos de ser família. Os fardos carregados por cada um de
nós são apenas divididos, nunca retirados de quem o fardo pertence. Cada um tem
seu fardo e deve carregá-lo, pois ele é parte importante, e até imprescindível,
na formação do caráter de seu carregador. Essa sempre foi à filosofia educativa
de nossos pais, principalmente de nossa mãe – de saudosa lembrança. Ela nos
ensinou que “nossos fardos são nossos” e sempre deveríamos aprender com
eles. Sua partida para junto de Deus nos deu o fardo de tocar a vida sem seus
sábios conselhos, e sem sua doce voz que nos trazia serenidade e razão. Esse
fardo em especial, tem me feito pensar para agir serenamente sem ela presente
do lado de fora, mas com ela constantemente no “lado de dentro”. Sua
morte foi uma tragédia para todos nós, um acontecimento repentino, emblemático
e inesquecível, um verdadeiro rito de passagem. Sua partida fez com que nos
olhássemos e nos enxergássemos melhor como família.
Os acidentes com a caçula, os divórcios dos mais velhos, as enfermidades
graves e súbitas, as cirurgias repentinas, a amputação de parte de um dos pés
de papai e a morte de mamãe Ruth, fizeram-nos mais unidos, mesmo que distantes
– porque moramos em lugares diferentes. Muitas vezes a distância já é uma
tragédia em si. Somos uma família igual a tantas espalhadas pelo mundo. O
interessante, é que mesmo sem termos conhecido o dito iídiche sobre famílias e
tragédias, parece que sempre soubemos disso. Talvez pelas raízes profundas que
em certo momento foram plantadas por nossos ancestrais judeus, em Terra Santa.
No velório de mamãe Ruth, havia muitos filhos, não estávamos somente nós,
os gestados em seu útero. Estava papai, estavam seus irmãos e irmãs, a quem ela
cuidou como filhos, estavam os filhos adotivos, estavam suas noras, estavam
seus netos afetivos, estavam seus netos sanguíneos, estavam seus sobrinhos,
estavam os amigos, estavam seus alunos, estavam seus discípulos, estava uma
grande parte de sua família. Naquele momento pude perceber como a família de
mamãe Ruth era grande; vislumbrei quanto ela havia se dado por prazer para
gerar tantos filhos, além de nós, os filhos de suas entranhas. Entre tantos
filhos de mamãe há uma a ser destacada. Glória, a primogênita dos filhos não
gestados, é quem representa o ministério familiar que aquela mulher de
aparência frágil, mas de gênio forte, exerceu por toda a vida. Os filhos de
mana Glória dividem com os meus o posto dos que contarão a história familiar de
mama Ruth e papai Geraldo.
Não faz muito tempo, papai me disse que quando certas tragédias
aconteceram à nossa família, ele não estaria dando o dízimo. Ouvi, pensei e
pormenorizei, por achar que não havia ligação entre as tragédias acontecidas a
nossa família – mesmo que elas nos tivessem aproximado –, com o fato de ele não
estar dando o dízimo. A preocupação de papai era pertinente, pois ele foi um
dizimista fiel, sempre dando por todos nós. De seu salário bruto, ele sempre
acrescentava um valor por cada filho e por mamãe. Foi esse comportamento
fidedigno, em contribuir com mais de dez por cento de seu salário bruto, que
fez com que ele se questionasse e se inquietasse quando algumas tragédias se
abateram sobre nós. Mas nossa percepção do que era o dízimo estava limitada;
hoje entendo que papai só não estava dando dinheiro para o templo, ou para a
congregação que ele frequentava, porém, continuava dando seu dízimo, nunca
havia parado. Ele sempre ajudou a todos que cruzaram seu caminho, nunca deixou
um parente desassistido, podendo ajudar. Ainda somos abençoados por papai, com
sua atenção, com seu cuidado, com seu socorro em horas de necessidade, com seus
conselhos e, sobretudo com suas preces.
***
Notas – Família.
1. http://aspsicos.blogspot.com.br/2009/09/definicao-de-familia.html.
2. Gênesis 2:24.
3. Gênesis 2:22-23.
4. Gênesis 4:1-2, 25.
Abreviações
BACF - Bíblia Almeida Corrigida e Fiel; BJC
- Bíblia Judaica Completa; BH - Bíblia Hebraica; BNVI - Bíblia
Nova Versão Internacional; ES - Escrituras Sagradas; BEP - Bíblia
Edição Pastoral.
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