"Sempre fomos livres nas profundezas de nosso coração, totalmente livres, homens e mulheres.
Fomos escravos no mundo externo, mas homens e mulheres livres em nossa alma e espírito."
Maharal de Praga (1525-1609)

Família.


“Certo dia um goy (um não judeu), perguntou a um judeu. “O que é mishpuche (família)? O judeu respondeu: “Você sabe o que é tsures (tragédia)? O goy respondeu negativamente. O judeu então completou: “Então você não pode entender o que é mishpuche”.
Anedota Iídiche


FAMÍLIA É A MATERIALIZAÇÃO DO PRAZER de um ser se dar a outro ser. Ao longo dos séculos, de termo que designava um “escravo doméstico”, passando pelas definições de subordinação ao um senhor feudal ou governante 1, aos conceitos modernos das famílias unissexuais, a intenção continua a mesma: materializar o prazer que se sente ao entregar-se a outra pessoa. Mas essa materialização só acontece com a geração de uma vida independente da nossa, no caso, os filhos. Esses por sua vez deveriam ser ensinados a também gerarem filhos.

Multiplicar e encher a terra, é a primeira ordem Divina, ainda nos primórdios da existência humana, seja ela adâmica ou darwiniana, não importa. Multiplicar-se é: dividirmo-nos em outros de nós mesmos, com características distintas e singulares de nós. Mas a geração de filhos, também se dá na transferência por meio do ensino de valores morais, sociais, intelectuais e afetivos. Gerados ou gestados, escolhidos ou herdados, esses filhos são a expressão do nosso prazer. Essa doação prazerosa que gera vida em multiplicação é entendida como família.

Família é o projeto do Criador para o ser humano ainda no início da existência em um jardim mítico feito para o deleite, a segurança e o sustento providos pelo Pai Eterno. Mas a multiplicação do ser só se efetivou fora do berço paradisíaco, depois da saída do lar Paterno, predita pelo filho Adão 2, quando recebeu sua parte Eva como mulher. Essa partida é o ponto de ruptura entre o singular que se divide em homem e mulher3, e o plural que se multiplica em filhos 4. Ao sair da casa paterna o embrião familiar se desenvolve no útero dessa independência divina, que gera descendência igual e diferente, que vive e mata, que planta o corpo na terra e parte protegido por Deus pelos caminhos de um jardim interno e existencial. Esse antagonismo Divino, soprado na família primordial é duradouro, porque foi soprado pelo Eterno. Essas tragédias que deram vida à família adâmica são essencialmente as mesmas que formam todas as famílias da terra, até hoje.

A anedota iídiche é verdade insofismável. Da mesma forma que o prazer é decorrente da dor, a família é decorrente de uma tragédia. Não podemos saber o que é família sem entendermos o que é tragédia. Não existe possibilidade de solidificarmos as relações entre os membros da família, sem o desassossego que as tragédias nos proporcionam. São elas que unem e solidificam as relações. Mas também não precisamos ficar correndo atrás de tragédias com a justificativa de que elas podem nos aproximar. Isso é tolice. Essa busca voluntária e desequilibrada pela tragédia é o que destrói a família porque mostra o descompromisso com o corpo fraterno. As tragédias que solidificam as relações familiares devem sempre nos surpreender, nos pegar desprevenidos, nos assustar quando chegam. São esses acontecimentos tragicamente “casuais” que nos empurram uns para os outros, nos envolvendo nos braços uns dos outros, nos lavando nas lágrimas uns dos outros, nos grudando uns nos outros.

Para que a família exista há a necessidade de doação, não podemos constituir família, sem nos doarmos a alguém, que por sua vez, também se doará a nós, para que juntos possamos promover a perpetuidade da nossa história. Sem família estamos fadados ao inferno do esquecimento. Se morrermos filhos, nossa história não se escreverá; se morrermos pais, teremos iniciado sua escrita; se morrermos avós, teremos a certeza de que ela será contada. Ser família é ser eterno; e essa eternidade se constrói quando geramos, gestamos, escolhemos ou herdamos filhos que carreguem nossa semente – seja ela biológica, intelectual ou emocional –, para plantar por onde forem. Quando somos família fazemos história, e essa história se inicia quando “saímos de casa” para escrever quem somos. Toda saída se dá porque haverá uma volta, só pode voltar para casa, quem sai de casa; esse retorno a casa é a perpetuação dos valores da casa materno-paterna. Essa partida do lar primordial é originada pelos conflitos físico, intelectual e emocional, que nos espremem para que possamos produzir o azeite que unge as relações familiares.

Simplificando: não há futuro físico, nem intelectual, nem emocional, nenhuma história será contada sobre nós, sem a reprodução. Família é a unidade que cria vida, é o mais poderoso agente de transmissão da memória coletiva.

Gerados pela mesma fonte seminal, e gestados no mesmo útero, somos três. Nosso pai é Geraldo Dias da Rocha e nossa mãe – de abençoada memória – é Ruth de Oliveira Rocha. Em algum momento da história, os avós deles, Judeus oriundos de Portugal, se acomodaram em lugares diferentes no norte e nordeste do Brasil e por motivos que somente o Senhor dos destinos sabe, conheceram-se e constituíram família. Cristãos Novos, cresceram e multiplicaram, gerando filhos e filhas. Em determinado momento, alguns filhos desses judeus cristãos, converteram-se ao protestantismo e passaram a educar seus filhos da maneira que julgavam ser a mais correta. É nesse ponto que se inicia a história de mamãe Ruth e papai Geraldo.

Em nossa família as tragédias sempre estiveram presentes, fossem na forma de graves acidentes, fossem na forma de separações, mas isso nunca nos distanciou; nunca deixamos de ser família. Os fardos carregados por cada um de nós são apenas divididos, nunca retirados de quem o fardo pertence. Cada um tem seu fardo e deve carregá-lo, pois ele é parte importante, e até imprescindível, na formação do caráter de seu carregador. Essa sempre foi à filosofia educativa de nossos pais, principalmente de nossa mãe – de saudosa lembrança. Ela nos ensinou que “nossos fardos são nossos” e sempre deveríamos aprender com eles. Sua partida para junto de Deus nos deu o fardo de tocar a vida sem seus sábios conselhos, e sem sua doce voz que nos trazia serenidade e razão. Esse fardo em especial, tem me feito pensar para agir serenamente sem ela presente do lado de fora, mas com ela constantemente no “lado de dentro”. Sua morte foi uma tragédia para todos nós, um acontecimento repentino, emblemático e inesquecível, um verdadeiro rito de passagem. Sua partida fez com que nos olhássemos e nos enxergássemos melhor como família.

Os acidentes com a caçula, os divórcios dos mais velhos, as enfermidades graves e súbitas, as cirurgias repentinas, a amputação de parte de um dos pés de papai e a morte de mamãe Ruth, fizeram-nos mais unidos, mesmo que distantes – porque moramos em lugares diferentes. Muitas vezes a distância já é uma tragédia em si. Somos uma família igual a tantas espalhadas pelo mundo. O interessante, é que mesmo sem termos conhecido o dito iídiche sobre famílias e tragédias, parece que sempre soubemos disso. Talvez pelas raízes profundas que em certo momento foram plantadas por nossos ancestrais judeus, em Terra Santa.

No velório de mamãe Ruth, havia muitos filhos, não estávamos somente nós, os gestados em seu útero. Estava papai, estavam seus irmãos e irmãs, a quem ela cuidou como filhos, estavam os filhos adotivos, estavam suas noras, estavam seus netos afetivos, estavam seus netos sanguíneos, estavam seus sobrinhos, estavam os amigos, estavam seus alunos, estavam seus discípulos, estava uma grande parte de sua família. Naquele momento pude perceber como a família de mamãe Ruth era grande; vislumbrei quanto ela havia se dado por prazer para gerar tantos filhos, além de nós, os filhos de suas entranhas. Entre tantos filhos de mamãe há uma a ser destacada. Glória, a primogênita dos filhos não gestados, é quem representa o ministério familiar que aquela mulher de aparência frágil, mas de gênio forte, exerceu por toda a vida. Os filhos de mana Glória dividem com os meus o posto dos que contarão a história familiar de mama Ruth e papai Geraldo.

Não faz muito tempo, papai me disse que quando certas tragédias aconteceram à nossa família, ele não estaria dando o dízimo. Ouvi, pensei e pormenorizei, por achar que não havia ligação entre as tragédias acontecidas a nossa família – mesmo que elas nos tivessem aproximado –, com o fato de ele não estar dando o dízimo. A preocupação de papai era pertinente, pois ele foi um dizimista fiel, sempre dando por todos nós. De seu salário bruto, ele sempre acrescentava um valor por cada filho e por mamãe. Foi esse comportamento fidedigno, em contribuir com mais de dez por cento de seu salário bruto, que fez com que ele se questionasse e se inquietasse quando algumas tragédias se abateram sobre nós. Mas nossa percepção do que era o dízimo estava limitada; hoje entendo que papai só não estava dando dinheiro para o templo, ou para a congregação que ele frequentava, porém, continuava dando seu dízimo, nunca havia parado. Ele sempre ajudou a todos que cruzaram seu caminho, nunca deixou um parente desassistido, podendo ajudar. Ainda somos abençoados por papai, com sua atenção, com seu cuidado, com seu socorro em horas de necessidade, com seus conselhos e, sobretudo com suas preces.



***
Notas – Família.
1. http://aspsicos.blogspot.com.br/2009/09/definicao-de-familia.html.
2. Gênesis 2:24.
3. Gênesis 2:22-23.
4. Gênesis 4:1-2, 25.

Abreviações
BACF - Bíblia Almeida Corrigida e Fiel; BJC - Bíblia Judaica Completa; BH - Bíblia Hebraica; BNVI - Bíblia Nova Versão Internacional; ES - Escrituras Sagradas; BEP - Bíblia Edição Pastoral.


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