"Sempre fomos livres nas profundezas de nosso coração, totalmente livres, homens e mulheres.
Fomos escravos no mundo externo, mas homens e mulheres livres em nossa alma e espírito."
Maharal de Praga (1525-1609)

O justo e sua “guerra” ética.


“Para tornar estas e outras manifestações representativas do tripé que somos, há necessidade de esforço. Há esforço para trazer a emoção à fala; há esforço para trazer inteligência à postura; e há esforço para trazer ação ao pensamento. O primeiro esforço produz sinceridade, o segundo, justiça; e o último, a ética. Honestidade, justiça e solidariedade são na verdade o tripé pelo qual as tradições religiosas resumem o funcionamento espiritual.” 1
Rabino Nilton Bonder


ALGUM TEMPO DEPOIS do episódio, de libertação, bênção, dízimo e abandono, o Senhor provocou a Abraão mais uma vez ao visitá-lo para dizer que a cidade onde morava seu sobrinho seria destruída. E agora? O que fazer diante de um inimigo tão Poderoso? Lutar com seres de carne e osso para salvar a família foi algo simples. Mas o que fazer diante daquela peleja com o Divino que lhe dizia tranquilamente que iria destruir a todos que não possuíssem senso de família? E que entre eles estava um parente, extensão de vida, sua família. Era como se o Eterno dissesse que estava ali para destruir o próprio Abraão. O que fazer? Mais uma vez o profundo senso de família gritou das entranhas daquele pai essencial, diante da maior de todas as tragédias: a ira Divina.

Abraão enfrentou novamente sua tragédia, desta vez usando argumentos éticos. Nessa argumentação com o Divino, ele evocou o sêmen de seu pai Terá, ele buscou pela “lembrança” de Deus, ele evocou a família. Os possíveis trigêmeos Abrão, Naor e Harã 2, receberam a mesma educação do velho Terá. O “filho mais moço”, Harã, teve um filho, porém morreu cedo, e seu filho, o garoto Ló foi criado pelo avô 3. Com essas informações não é difícil imaginar que Ló teria recebido a mesma educação que Abraão. Quando Terá – pai de Abraão e avô de Ló – morreu, Abraão partiu orientado pelo Senhor, para construir uma nova cultura, uma nova família e Ló foi com ele4. Aquele sobrinho era como um filho para Abraão, e ele, não poderia deixar a linhagem de seu irmão morrer, a história da vida de Terá seu pai precisava ser contada por Ló. Presumindo que o sobrinho estivesse praticando a justiça, no lugar onde morava, Abraão argumentou eticamente com o Todo Poderoso. O texto bíblico relata a batalha reverencial entre Abraão e o Santo, onde todos os argumentos em favor de Ló foram aceitos por Deus, mas ao final da luta ética, o xeque-mate pertenceria ao Criador.

Diz o texto:

“Então viraram aqueles homens os rostos dali, e foram-se para Sodoma; mas Abraão ficou ainda em pé diante da face do SENHOR. E chegou-se Abraão, dizendo: Destruirás também o justo com o ímpio? Se porventura houver cinqüenta justos na cidade, destruirás também, e não pouparás o lugar por causa dos cinqüenta justos que estão dentro dela? Longe de ti que faças tal coisa, que mates o justo com o ímpio; que o justo seja como o ímpio, longe de ti. Não faria justiça o Juiz de toda a terra?

Então disse o SENHOR: Se eu em Sodoma achar cinqüenta justos dentro da cidade, pouparei a todo o lugar por amor deles.

E respondeu Abraão dizendo: Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor, ainda que sou pó e cinza. Se porventura de cinqüenta justos faltarem cinco, destruirás por aqueles cinco toda a cidade? E disse: Não a destruirei, se eu achar ali quarenta e cinco. E continuou ainda a falar-lhe, e disse: Se porventura se acharem ali quarenta? E disse: Não o farei por amor dos quarenta. Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, se eu ainda falar: Se porventura se acharem ali trinta? E disse: Não o farei se achar ali trinta. E disse: Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor: Se porventura se acharem ali vinte? E disse: Não a destruirei por amor dos vinte. Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, que ainda só mais esta vez falo: Se porventura se acharem ali dez? E disse: Não a destruirei por amor dos dez.

E retirou-se o SENHOR, quando acabou de falar a Abraão; e Abraão tornou-se ao seu lugar.” 5

A intercessão de Abraão levou em conta o número dos parentes que estavam em Sodoma: Ló e a esposa, as duas filhas e seus maridos. Seis pessoas, que Abraão esperava estarem praticando a justiça – a ação de retribuir uns aos outros, por tudo que recebiam do Senhor –. Ele creu que no mínimo, seus seis parentes tivessem praticado a justiça uns com os outros e com seus empregados, e esses com os seus. Uma aritmética minimalista – no mínimo dez pessoas sendo justas, praticando a justiça umas com as outras – demoveria Deus de sua intenção destrutiva. Mas infelizmente não havia Justos naquela cidade nem na família de Ló. A prova disso foi a destruição total da cidade de Sodoma, uma tragédia estabelecida por não haver Justiça naquele lugar. Shadai não encontrou ninguém Justo ali.

Esse texto épico dá aos libertadores de família, confiança para argumentar com Deus em favor dos familiares. Porém, precisamos saber que essa argumentação ética com o Eterno em favor de nosso familiar só se dará quando a vida desse ente querido estiver correndo perigo nas mãos do Santo. Enfrentar Deus numa batalha ética pressupõe uma libertação física anterior, onde, depois de liberto, nosso ente querido teria por vontade própria, retornado para “Sodoma”. Enfrentar Shadai significa que todos os esforços para libertar o familiar “sodomita” foram despendidos, todas as intervenções humanas para trazê-lo ao estado familiar, foram realizadas. Será nesse momento de total ausência de senso familiar por parte de nosso parente, que a ira de Deus descerá do Céu sobre nossa família. Naquele episódio, Abraão sabia que não havia mais o que fazer para livrar o sobrinho de seu estado sodomita, tudo dependia da Misericórdia de Deus.

Quando o Todo Poderoso vier para destruir nossa família com a morte prematura e/ou trágica de um ente querido, podemos usar o mesmo expediente do Justo Abraão: interceder baseado na educação recebida. Mas, que educação tem recebido a família? Com qual educação temos educado nossos filhos? Com qual educação temos recebido as repreensões de nossos pais? Qual a educação familiar que possuímos? Sem saber qual educação recebemos, sem saber o que construímos ao longo do caminho, sem saber que tipo de educação toda a família recebeu, não há como interceder com argumentos éticos.

Porém, no quesito intercessão, não podemos e não devemos abandonar a verdade de que Jesus é o Supremo Intercessor. É em nome dele que podemos argumentar com o Pai Eterno por nós e por nossos parentes. Muitos de nós – a grande maioria –, não possuímos argumentos éticos para interceder por nossas famílias. Jesus nos “empresta” sua ética, para que possamos “usá-la” diante de Deus para salvar nossos parentes “sodomitas”. Jesus é o Supremo Justo, o Supremo Tsadik. Mas conhecer essa maravilhosa verdade não deve tirar de nós a responsabilidade de educar nossos filhos com nossa própria vida.

Pense nisto.



***
Notas – O Justo e sua “guerra” ética.
1. Nilton Bonder, Fronteiras da Inteligência, A Espiritualidade não existe. p.159.
2. Gênesis 11:26. Acredito na possibilidade de gêmeos, porque me parece implícito no texto de Gênesis 11, que os três filhos foram gerados de uma só vez, e/ou que teriam nascido “de uma só vez”.
3. Gênesis 11:27 e 31.
4. Gênesis 12:4.
5. Gênesis 18:22 a 33 - BACF, Versão Digital 6.7, maio 2010.

Abreviações
BACF - Bíblia Almeida Corrigida e Fiel; BJC - Bíblia Judaica Completa; BH - Bíblia Hebraica; BNVI - Bíblia Nova Versão Internacional; ES - Escrituras Sagradas; BEP - Bíblia Edição Pastoral


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