“Para tornar estas e outras manifestações representativas do tripé que
somos, há necessidade de esforço. Há esforço para trazer a emoção à fala; há
esforço para trazer inteligência à postura; e há esforço para trazer ação ao
pensamento. O primeiro esforço produz sinceridade, o segundo, justiça; e o
último, a ética. Honestidade, justiça e solidariedade são na verdade o tripé
pelo qual as tradições religiosas resumem o funcionamento espiritual.” 1
Rabino Nilton Bonder
ALGUM TEMPO DEPOIS do episódio, de libertação, bênção, dízimo e abandono, o Senhor provocou
a Abraão mais uma vez ao visitá-lo para dizer que a cidade onde morava seu
sobrinho seria destruída. E agora? O que fazer diante de um inimigo tão
Poderoso? Lutar com seres de carne e osso para salvar a família foi algo
simples. Mas o que fazer diante daquela peleja com o Divino que lhe dizia
tranquilamente que iria destruir a todos que não possuíssem senso de família? E
que entre eles estava um parente, extensão de vida, sua família. Era como se o
Eterno dissesse que estava ali para destruir o próprio Abraão. O que fazer?
Mais uma vez o profundo senso de família gritou das entranhas daquele pai
essencial, diante da maior de todas as tragédias: a ira Divina.
Abraão enfrentou novamente sua tragédia, desta vez usando argumentos
éticos. Nessa argumentação com o Divino, ele evocou o sêmen de seu pai Terá,
ele buscou pela “lembrança” de Deus, ele evocou a família. Os possíveis
trigêmeos Abrão, Naor e Harã 2, receberam a mesma educação do velho
Terá. O “filho mais moço”, Harã, teve um filho, porém morreu cedo, e seu
filho, o garoto Ló foi criado pelo avô 3. Com essas informações não
é difícil imaginar que Ló teria recebido a mesma educação que Abraão. Quando
Terá – pai de Abraão e avô de Ló – morreu, Abraão partiu orientado pelo Senhor,
para construir uma nova cultura, uma nova família e Ló foi com ele4.
Aquele sobrinho era como um filho para Abraão, e ele, não poderia deixar a
linhagem de seu irmão morrer, a história da vida de Terá seu pai precisava ser
contada por Ló. Presumindo que o sobrinho estivesse praticando a justiça, no
lugar onde morava, Abraão argumentou eticamente com o Todo Poderoso. O texto
bíblico relata a batalha reverencial entre Abraão e o Santo, onde todos os
argumentos em favor de Ló foram aceitos por Deus, mas ao final da luta ética, o
xeque-mate pertenceria ao Criador.
Diz o texto:
“Então viraram aqueles homens os rostos dali, e foram-se para Sodoma; mas
Abraão ficou ainda em pé diante da face do SENHOR. E chegou-se Abraão, dizendo:
Destruirás também o justo com o ímpio? Se porventura houver cinqüenta justos na
cidade, destruirás também, e não pouparás o lugar por causa dos cinqüenta
justos que estão dentro dela? Longe de ti que faças tal coisa, que mates o
justo com o ímpio; que o justo seja como o ímpio, longe de ti. Não faria
justiça o Juiz de toda a terra?
Então disse o SENHOR: Se eu em Sodoma achar cinqüenta justos dentro da
cidade, pouparei a todo o lugar por amor deles.
E respondeu Abraão dizendo: Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor,
ainda que sou pó e cinza. Se porventura de cinqüenta justos faltarem cinco,
destruirás por aqueles cinco toda a cidade? E disse: Não a destruirei, se eu
achar ali quarenta e cinco. E continuou ainda a falar-lhe, e disse: Se
porventura se acharem ali quarenta? E disse: Não o farei por amor dos quarenta.
Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, se eu ainda falar: Se porventura se
acharem ali trinta? E disse: Não o farei se achar ali trinta. E disse: Eis que
agora me atrevi a falar ao Senhor: Se porventura se acharem ali vinte? E disse:
Não a destruirei por amor dos vinte. Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, que
ainda só mais esta vez falo: Se porventura se acharem ali dez? E disse: Não a
destruirei por amor dos dez.
E retirou-se o SENHOR, quando acabou de falar a Abraão; e Abraão
tornou-se ao seu lugar.” 5
A intercessão de Abraão levou em conta o número dos parentes que estavam
em Sodoma: Ló e a esposa, as duas filhas e seus maridos. Seis pessoas, que
Abraão esperava estarem praticando a justiça – a ação de retribuir uns aos
outros, por tudo que recebiam do Senhor –. Ele creu que no mínimo, seus seis
parentes tivessem praticado a justiça uns com os outros e com seus empregados, e
esses com os seus. Uma aritmética minimalista – no mínimo dez pessoas sendo
justas, praticando a justiça umas com as outras – demoveria Deus de sua
intenção destrutiva. Mas infelizmente não havia Justos naquela cidade nem na
família de Ló. A prova disso foi a destruição total da cidade de Sodoma, uma
tragédia estabelecida por não haver Justiça naquele lugar. Shadai não
encontrou ninguém Justo ali.
Esse texto épico dá aos libertadores de família, confiança para
argumentar com Deus em favor dos familiares. Porém, precisamos saber que essa
argumentação ética com o Eterno em favor de nosso familiar só se dará quando a
vida desse ente querido estiver correndo perigo nas mãos do Santo. Enfrentar
Deus numa batalha ética pressupõe uma libertação física anterior, onde, depois
de liberto, nosso ente querido teria por vontade própria, retornado para “Sodoma”.
Enfrentar Shadai significa que todos os esforços para libertar o
familiar “sodomita” foram despendidos, todas as intervenções humanas
para trazê-lo ao estado familiar, foram realizadas. Será nesse momento de total
ausência de senso familiar por parte de nosso parente, que a ira de Deus
descerá do Céu sobre nossa família. Naquele episódio, Abraão sabia que não
havia mais o que fazer para livrar o sobrinho de seu estado sodomita, tudo
dependia da Misericórdia de Deus.
Quando o Todo Poderoso vier para destruir nossa família com a morte
prematura e/ou trágica de um ente querido, podemos usar o mesmo expediente do
Justo Abraão: interceder baseado na educação recebida. Mas, que educação tem
recebido a família? Com qual educação temos educado nossos filhos? Com qual
educação temos recebido as repreensões de nossos pais? Qual a educação familiar
que possuímos? Sem saber qual educação recebemos, sem saber o que construímos
ao longo do caminho, sem saber que tipo de educação toda a família recebeu, não
há como interceder com argumentos éticos.
Porém, no quesito intercessão, não podemos e não devemos abandonar a
verdade de que Jesus é o Supremo Intercessor. É em nome dele que podemos
argumentar com o Pai Eterno por nós e por nossos parentes. Muitos de nós – a
grande maioria –, não possuímos argumentos éticos para interceder por nossas
famílias. Jesus nos “empresta” sua ética, para que possamos “usá-la”
diante de Deus para salvar nossos parentes “sodomitas”. Jesus é o
Supremo Justo, o Supremo Tsadik. Mas conhecer essa maravilhosa verdade
não deve tirar de nós a responsabilidade de educar nossos filhos com nossa
própria vida.
Pense nisto.
***
Notas – O Justo e sua “guerra” ética.
1. Nilton Bonder, Fronteiras da Inteligência, A Espiritualidade não existe.
p.159.
2. Gênesis 11:26. Acredito na possibilidade de gêmeos, porque me parece
implícito no texto de Gênesis 11, que os três filhos foram gerados de uma só
vez, e/ou que teriam nascido “de uma só vez”.
3. Gênesis 11:27 e 31.
4. Gênesis 12:4.
5. Gênesis 18:22 a 33 - BACF, Versão Digital 6.7, maio 2010.
Abreviações
BACF - Bíblia Almeida Corrigida e Fiel; BJC
- Bíblia Judaica Completa; BH - Bíblia Hebraica; BNVI - Bíblia
Nova Versão Internacional; ES - Escrituras Sagradas; BEP - Bíblia
Edição Pastoral
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