"Sempre fomos livres nas profundezas de nosso coração, totalmente livres, homens e mulheres.
Fomos escravos no mundo externo, mas homens e mulheres livres em nossa alma e espírito."
Maharal de Praga (1525-1609)

Quem é o pobre de Deus?


“Felizes os cônscios de sua necessidade espiritual ...” 1
Jesus, o Messias.


Para sabermos quem são os pobres de Deus, é necessário o entendimento de que estamos tratando de assuntos que tem sua gênese no oriente médio, na palestina, num povo específico entre tantos, em uma família distinta de muitas e que tem um patriarca distinto dos demais pais. Esse homem é Abraão. Esse fato modifica tudo, pois o entendimento de palavras e termos religiosos, que nos significam os atos – também ligados à religiosidade –, são em sua maioria de origem greco-latina; os que não são, tiveram seus significados originais modificados pela semântica de cada lugar em que são pronunciados. Afirmar que caridade não é o mesmo que a Justiça do Reino do Céu pode causar em muitos um descontentamento, mas esta é uma afirmação coerente, levando em conta que estamos tratando de um assunto primordialmente Judaico.

Caridade e carícia tem a mesma raiz latina “carus”, que é “apreciado, querido, de alto preço”. Do hebraico, acariciar é “gashash” 2, não é “tzedakah”. Não custa nada atentar para o fato de que a caridade cuida somente da dimensão física do ser humano. Se buscarmos pela lembrança, todos os atos de caridade realizados por instituições religiosas ou organizações não governamentais e até governamentais, somente o cuidado com o físico é oferecido nos momentos de tragédia. Porém o ser humano é formado de outras dimensões além da dimensão física. Fazer caridade, cuidar dos dodóis, acariciar os sofridos, não supre as demais necessidades. A bênção do Misericordioso nos completa em todas as nossas necessidades. Em Números seis de 24 a 26, encontramos esse olhar completo de Deus sobre nossa vida. Eis o dito do Eterno:

“Que Adonai lhe abençoe e guarde.
Que Adonai lhe Ilumine e dê graça.
Que Adonai levante a face sobre você,
lhe dirija atenção e lhe traga paz.”3

Nessa bênção única atribuída ao Deus Misericordioso, as quatro dimensões da existência do ser humano podem ser encontradas. A atenção de Deus que nos guarda, trata de nossa fisicalidade; a iluminação que vem d’Ele, nos nutre o intelecto; Seu olhar, Sua atenção sobre nós é o que nos traz paz, cuida do nosso emocional. Mas a quarta dimensão existente no verso não se apresenta distinta das demais dimensões, ela é a soma das outras três existências. Quando nos sentimos protegidos, nutridos intelectualmente e cuidados emocionalmente, nossa dimensão espiritual é alimentada e fortalecida. É nessa proteção holística que a Justiça do Reino do Céu se separa do conceito de caridade.

Os caridosos cuidam dos socialmente necessitados, mas dificilmente cuidam dos moralmente desassistidos ou dos psicologicamente afligidos; quando muito, cuidam de duas questões apenas, nunca das três. Sem o cuidado com as três dimensões humanas – física, intelectual e emocional – não pode haver o cuidado espiritual. O ajuntamento de Justos gentis, denominado por Jesus de Igreja, deve cuidar da dimensão espiritual, mas a dimensão espiritual não existe sem a presença grave das outras dimensões. Dessa forma, para realizar Seu propósito, a Igreja, o ajuntamento de Justos, deve praticar a Justiça, a tzedakah, deve cuidar do homem como um todo. E isso está claro no jantar de dízimo oferecido ao familiar, com a presença do levita, o “assassino primordial”, do estrangeiro, da viúva e do órfão. Nessa celebração a família passa a ser composta de malfeitores, de estranhos, de pessoas azedas por terem perdido o amor que adoça a vida e por filhos sem referência paterna.

Quando encontro provas insofismáveis dos valores da verdadeira Igreja, desse ajutamento gentil, a lembrança da vida de meus pais me enche de alegria. Alegria, porque vi dentro de nossa casa essa Igreja existir durante muito tempo e em muitas ocasiões. Mamãe e papai sempre acreditaram no “evangelho integral”, termo cunhado pelo pastor Antunes de Oliveira. Eles viveram o que acreditavam e durante toda a sua vida juntos cuidaram das questões físicas das pessoas, ofertando muitas vezes do pouco que possuíamos; comida, roupas, sapatos (...) até colchão mamãe doava quando sentia no coração fazê-lo. Mas essa não era a única ajuda que meus pais proporcionaram, eles também cuidaram do intelecto das pessoas. Ela era professora de língua portuguesa, ensinava o idioma aos missionários americanos que chegavam a Manaus sem nem saber pedir água em nosso idioma; também ensinava para adolescentes o “bê-a-bá” da vida; ensinou para muitos como administrar suas finanças; ensinou para outras pessoas como redigir documentos eclesiásticos, fazer balancetes, etc.. No fim de sua existência terrena, aos 76 anos, montou uma escolinha de futebol para ensinar aos “jogadores” como “enfrentarem” os problemas da vida. Papai por sua vez, sempre foi um professor de “mão cheia” e ainda ensina para quem deseja aprender o que ele tem para ensinar. Em seu ministério pastoral foi mais professor que ministro. Ele sempre foi o sustentador financeiro desse ministério divino da misericórdia. Porém se eles só tivessem feito isso, já seria o bastante para um casal de pessoas nascidas nos anos 30. Mas a bênção Espiritual não se completaria, pois ainda faltava cuidar do emocional das pessoas, e eles fizeram isso. Levantaram o rosto para dentro de suas próprias famílias e cuidaram das mazelas psíquicas de todos nós. Literalmente mamãe e papai cuidaram dos doentes mentais da família; quase todos ficaram em repouso em nossa casa, dividindo os quartos conosco. Mama Ruth e papai Geraldo praticaram a tzedakah até os momentos finais da vida dela. Papai continua a praticar essa Misericórdia ajudando no sustento de familiares, pagando a mensalidade escolar, contribuindo financeiramente com missionários e necessitados, além de cuidar de sua irmã mais velha. Eles são para mim o maior exemplo de qehilaty – Igreja de Jesus. Mamãe não confundia religião com igreja, embora fosse uma mulher muito religiosa. Mama Ruth – de abençoada memória –, não era uma mulher caridosa, não era uma mulher certinha, não era uma boa pessoa, ela era uma mulher Justa. Papai da mesma forma é um homem Justo. Não posso deixar de mencionar a querida mãe Rai – Raimunda Rocha –, que na vida de mamãe foi seu braço direito nos serviços de visitação aos enfermos, e tempos depois de seu falecimento, tornou-se a companheira de papai Geraldo, participando conosco da família, das tragédias, das bênçãos e do dízimo. Ela continua no exercício da Misericórdia, visitando os enfermos, como fazia antes.

Quando a Lei do dízimo foi estabelecida pelo Misericordioso para que os irmãos cuidassem uns dos outros, Ele estava transformando o etéreo da bênção pronunciada em atos concretos de fraternidade. Ao determinar em lei perpétua que o levita deveria estar junto com a família nas celebrações fraternas, Ele decretava o exercício do perdão. O levita não representava somente ao assassino do “primogênito primordial” da família que oferecia o banquete, também representava o assassino do marido, o assassino do pai, o assassino do amigo. O levita era o maior vilão naquele momento fraterno. Mas ele precisava estar lá naquele lugar, para ser perdoado por aqueles que precisavam exercitar o perdão. Que vantagem há em darmos de comer para quem nos proporciona coisas boas? Que vantagem há em engolirmos somente o que é gostoso? Que vantagem há em viver fugindo dos problemas?

No momento em que os desfilhados perdoavam o assassino, ele ocupava o espaço do filho morto. Quando a viúva perdoava o assassino de seu marido, ele se obrigava a ampara-la. Quando o órfão perdoava o assassino de seu pai, ele se tornava seu professor. Quando o estrangeiro perdoava o assassino de seu amigo, ele se tornava o protetor, o guardador, o porto seguro. Nesse banquete familiar as quatro dimensões do cuidado com o ser humano estavam presentes, exalando o suave aroma do perdão.

Mas quem é o pobre de Deus?

Todos nós, somos pobres de Deus. Quem recebe o socorro de Deus por nosso intermédio é pobre de Deus. Nós que recebemos o socorro de Deus por intermédio de outra pessoa também somos pobres de Deus. Pobres de Deus somos todos nós. Reconhecer esse fato faz com que obtenhamos o Reino do Céu, que deve ser repartido com quem precisa Dele em nós.



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Notas – Quem é o pobre de Deus?
1. Mateus 5:3 – Escrituras Sagradas, Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, 1984.
2. De acordo com o Dicionário Strong digitalizado.
3. Números 6:24 a 26 – BJC, Editora vida, 2010.

Abreviações
BACF - Bíblia Almeida Corrigida e Fiel; BJC - Bíblia Judaica Completa; BH - Bíblia Hebraica; BNVI - Bíblia Nova Versão Internacional; ES - Escrituras Sagradas; BEP - Bíblia Edição Pastoral.

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