“O que é diferente é automaticamente visto como “ruim”. Verdadeiramente
amar o “outro” é tão difícil e violento como se propuséssemos amar o “ruim” ou
o imperfeito. O exorcismo, o ato de querer excluir e erradicar o “ruim”,
significa verdadeiramente querer erradicar o “outro”. Como poderemos tolerar os
outros e amá-los, se não toleramos em nós o que é “outro”, o que é fora de
padrão e de expectativas? Não há identidade sem o outro, não há bom sem o ruim
e não há bem sem o mal. (...) Qualquer tentativa que vise extirpar o “outro-ruim”
corre o risco de inventar um “bom” monstruoso que seja desagradável, horrendo e
destrutivo. Isso porque amar é o sentimento capaz de apreciar o diferente. Só
poderemos integrar nosso “ruim” a nós, se pudermos processá-lo pelo sentimento
de amor.” 1
Rabi Nilton Bonder
LONGE DE SER DEFINIDA por Aristóteles como um estilo teatral, uma forma catártica2
de observar a própria vida, por meio de um sentimento mórbido de apreciar o
sofrimento alheio, a tragédia é a centelha que gera a família. Em Adão, o ser humano
essencial, temos a primeira definição de tragédia. Dividido em si mesmo, parte
homem, parte mulher, ao apaixonar-se por seu outro ser, sua fêmea, rompeu os
laços paternos – naquele momento identificado pela relação com o Pai Eterno –,
para proliferar-se, obedecendo de forma antagônica à ordem Paterna de crescer e
multiplicar3. Essa ruptura com o estado paradisíaco de filho
protegido por Deus é a primeira tragédia que gera a primeira família.
Mas nem sempre a tragédia familiar é a interrupção dolorosa de
relacionamentos, seja pela distância, pelo divórcio ou pela morte. Muitas vezes
ela se apresenta em nossa vida pela aproximação e pelo convívio. No livro de
provérbios encontramos vários conselhos sobre esse fato. Viver com um parente
demasiadamente exigente, ou intransigente, dividir o mesmo teto com alguém que
reclama de tudo, conviver com familiares que só enxergam defeitos é muitas
vezes uma tragédia maior que sua ausência. Salomão diz no livro de Provérbios4,
que é melhor morar no fundo do quintal, que dividir o mesmo teto com um parente
que reclama de tudo.
Viver em família não é somente participar de um ajuntamento parental de
pessoas que se suportam quando se desencontram nos caminhos da existência, nem
o insosso convívio da total aceitação desses desencontros; família é muito mais
que isso. Viver em família é encontrar a alma gêmea e junto com ela produzir
outras almas tão iguais e diferentes ao mesmo tempo. Viver em família é
perceber as similaridades e as diferenças que nos fazem únicos. Família é o
grande palco dos conflitos espirituais, ela é o paradigma da sociedade. É nela
e por ela que nascem os verdadeiros heróis, aqueles que modificam o mundo.
A família, o ser plural, se efetiva quando se torna singular dentro de
cada um de seus membros. Essa internalização que singulariza é a única maneira
de garantir a pluralidade familiar. As crises vividas por cada membro precisam
ser vistas como coletivas. Para que exista de fato uma família, as preocupações
com o bem estar plural devem superar as angústias do familiar singular. Vencer
as próprias lutas em nome da pacificação familiar é o que transforma,
aparentados em família. A internalização singular da tragédia plural e a
pluralização da tragédia singular, só acontecem pelo respeito à dor do outro.
Esse exercício de se condoer com a tragédia do outro, sem acusá-lo, sem tentar
achar razão ou culpado, e acima de tudo, sem retirar-lhe o fardo, é o que une.
Porém o comportamento inverso enfraquece os laços fraternos e pode até destruir
a família. Essa reverência distante pelo universo alheio, mas não dissociado de
nós, é o tempero familiar que as tragédias nos proporcionam.
Nossas tragédias pessoais não se resumem somente em conviver com um
parente chato. No mesmo lugar que nascem os heróis, nascem os vilões. Sendo o
útero da sociedade, a família gera tanto um quanto o outro, ambos tem o mesmo
poder, o poder de se reproduzirem em outras famílias sendo eles mesmos sua
célula matriz. Daí o valor do dito iídiche que compara e propõe entender a
família por meio das tragédias sofridas ou geradas por ela.
Creio que as “drogas” se tornaram a maior de todas as tragédias
familiares. Quando me refiro a elas não seleciono qual delas é mais nociva;
para mim todas as drogas são nocivas; as “mais leves” despertam à
curiosidade e à experimentação de outras “mais pesadas”. Os governos já
não tem mais controle do estado de sítio que se estabeleceu no País por conta
do tráfico de drogas. A Organização Mundial de Saúde – OMS – classificou a dependência
de drogas como doença mental ou transtorno psicoemocional5,
tratando o droga-dito6 como um enfermo mental. Tola noção do
que são as “drogas” e quais são as consequências dela. Essa tragédia
global e contemporânea, não escolhe classe social, nem nível intelectual, nem
segmento religioso ou classe política. Ela atinge a todos direta e
indistintamente.
Ao afirmar que “a droga” é a tragédia secular que aflige e destrói
as famílias da terra, não me arvoro a oferecer sequer uma solução. As soluções,
sócio religiosas são paliativas, porque tratam somente das questões
sintomáticas da “droga”; digo sintomáticas, por entender que “usar
droga” não é o problema em si, apesar da prática ser a causadora das
tragédias familiares. Não vejo no momento presente, ninguém com capacidade para
quebrar os paradigmas já estabelecidos pela OMS para o enfrentamento dessa
tragédia. Nem pessoas, nem instituições parecem entender os motivos que levam
um familiar a “usar droga”. Particularmente creio que a questão original
está dentro da família – a célula-máter da sociedade 7. Não
há família sem tragédia, e também não há tragédia sem família. Onde existir uma
família, existe um estado de tragédia potencial; onde ocorrer uma tragédia,
existe uma família envolvida.
Nos dias de hoje, a falta de tolerância doméstica é comportamento comum
dentro dos lares. Essa falta de tolerância com o outro familiar “errado”,
aos olhos do intransigente, gera em si o desejo de exterminar aquele “outro
ruim”. É nesse momento e por esse motivo, que os assassinatos familiares ocorrem.
Nunca em uma década, tantos filhos indefesos foram assassinados por seus
parentes, fossem eles pais biológicos ou não. Nunca em uma década tanta
violência de parentes contra parentes estampou as manchetes dos noticiários. As
“casas” alicerçadas sobre a areia das relações temporárias, regidas
pelas necessidades do prazer físico, ou pelo medo da solidão, estão
desmoronando. As “casas” construídas sobre a areia de um individualismo
arrogante e cruel, gerado no poder de comprar aquilo que os olhos desejam
8, estão caindo. As “casas” feitas com a areia dos agrados físicos
dos presentes caros, ao invés do carinho afetuoso do simples abraço, estão se
desfazendo ao sopro do vento9. E como está sendo doloroso ver essa
terrível e trágica profecia se cumprir.
Infelizmente, nem com essa visão dantesca as “outras” famílias se
fortalecem, pelo contrário elas se esfacelam, se dissipam, se destroem por não
terem raiz em si mesmas. As tragédias que julgamos tão distantes de nós
precisam ser conceitualmente, trazidas para perto, para dentro, endorcisadas.
A noção de que “aquilo” também pode acontecer “aqui”, precisa ser
vivenciada para que possamos descobrir o que causou “aquela” tragédia, e
impedir que pelas mesmas razões ela se manifeste “aqui”, em nossa
família.
Mas a família é abençoada pela tragédia, seja suportando e/ou entendendo
o estado de tragédia de um “outro” familiar, seja pela desgraça de ter
esse membro arrancado de nós. Seja como for, a família sempre será a origem e o
objetivo de uma tragédia. Para entender como as tragédias podem nos abençoar
precisamos ouvir, refletir e praticar o primeiro mandamento da Espiritualidade:
“... ama teu próximo como a ti mesmo” 10. Esse é o mandamento
universal. Porem escrito com as nossas letras ocidentais, muitas vezes nada
significa; se muito, esse mandamento vira somente um bom sermão em épocas de
desavença nas congregações. Porém a escrita hebraica em sua sacralidade dá o
verdadeiro tom melódico ao dito.
***
Notas – Tragédia.
1. Nilton Bonder, Fronteiras da Inteligência, Senso de Bondade. p.85.
2. Catarse é uma forma de tratamento psicanalítico que estimula a liberação
de pensamentos e emoções que estavam reprimidos no inconsciente, provocando
certo alívio emocional.
3. Gênesis 1:22.
4. Provérbios 25:24.
5. Segundo o relatório “Neurociências: consumo e dependência de substâncias
psicoativas” - OMS; ISBN 92.4.859124.8.
6. Termo usado pelos especialistas. Vem de: droga + adicto = pessoa viciada
em droga – droga-dito.
7. Definição de família da antiga matéria “Moral e Cívica”.
8. I João 2:16.
9. Mateus 7:26-27.
10. Levíticos 19:18.
Abreviações
BACF - Bíblia Almeida Corrigida e Fiel; BJC
- Bíblia Judaica Completa; BH - Bíblia Hebraica; BNVI - Bíblia
Nova Versão Internacional; ES - Escrituras Sagradas; BEP - Bíblia
Edição Pastoral
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