"Sempre fomos livres nas profundezas de nosso coração, totalmente livres, homens e mulheres.
Fomos escravos no mundo externo, mas homens e mulheres livres em nossa alma e espírito."
Maharal de Praga (1525-1609)

Tragédia.


“O que é diferente é automaticamente visto como “ruim”. Verdadeiramente amar o “outro” é tão difícil e violento como se propuséssemos amar o “ruim” ou o imperfeito. O exorcismo, o ato de querer excluir e erradicar o “ruim”, significa verdadeiramente querer erradicar o “outro”. Como poderemos tolerar os outros e amá-los, se não toleramos em nós o que é “outro”, o que é fora de padrão e de expectativas? Não há identidade sem o outro, não há bom sem o ruim e não há bem sem o mal. (...) Qualquer tentativa que vise extirpar o “outro-ruim” corre o risco de inventar um “bom” monstruoso que seja desagradável, horrendo e destrutivo. Isso porque amar é o sentimento capaz de apreciar o diferente. Só poderemos integrar nosso “ruim” a nós, se pudermos processá-lo pelo sentimento de amor.” 1
Rabi Nilton Bonder


LONGE DE SER DEFINIDA por Aristóteles como um estilo teatral, uma forma catártica2 de observar a própria vida, por meio de um sentimento mórbido de apreciar o sofrimento alheio, a tragédia é a centelha que gera a família. Em Adão, o ser humano essencial, temos a primeira definição de tragédia. Dividido em si mesmo, parte homem, parte mulher, ao apaixonar-se por seu outro ser, sua fêmea, rompeu os laços paternos – naquele momento identificado pela relação com o Pai Eterno –, para proliferar-se, obedecendo de forma antagônica à ordem Paterna de crescer e multiplicar3. Essa ruptura com o estado paradisíaco de filho protegido por Deus é a primeira tragédia que gera a primeira família.

Mas nem sempre a tragédia familiar é a interrupção dolorosa de relacionamentos, seja pela distância, pelo divórcio ou pela morte. Muitas vezes ela se apresenta em nossa vida pela aproximação e pelo convívio. No livro de provérbios encontramos vários conselhos sobre esse fato. Viver com um parente demasiadamente exigente, ou intransigente, dividir o mesmo teto com alguém que reclama de tudo, conviver com familiares que só enxergam defeitos é muitas vezes uma tragédia maior que sua ausência. Salomão diz no livro de Provérbios4, que é melhor morar no fundo do quintal, que dividir o mesmo teto com um parente que reclama de tudo.

Viver em família não é somente participar de um ajuntamento parental de pessoas que se suportam quando se desencontram nos caminhos da existência, nem o insosso convívio da total aceitação desses desencontros; família é muito mais que isso. Viver em família é encontrar a alma gêmea e junto com ela produzir outras almas tão iguais e diferentes ao mesmo tempo. Viver em família é perceber as similaridades e as diferenças que nos fazem únicos. Família é o grande palco dos conflitos espirituais, ela é o paradigma da sociedade. É nela e por ela que nascem os verdadeiros heróis, aqueles que modificam o mundo.

A família, o ser plural, se efetiva quando se torna singular dentro de cada um de seus membros. Essa internalização que singulariza é a única maneira de garantir a pluralidade familiar. As crises vividas por cada membro precisam ser vistas como coletivas. Para que exista de fato uma família, as preocupações com o bem estar plural devem superar as angústias do familiar singular. Vencer as próprias lutas em nome da pacificação familiar é o que transforma, aparentados em família. A internalização singular da tragédia plural e a pluralização da tragédia singular, só acontecem pelo respeito à dor do outro. Esse exercício de se condoer com a tragédia do outro, sem acusá-lo, sem tentar achar razão ou culpado, e acima de tudo, sem retirar-lhe o fardo, é o que une. Porém o comportamento inverso enfraquece os laços fraternos e pode até destruir a família. Essa reverência distante pelo universo alheio, mas não dissociado de nós, é o tempero familiar que as tragédias nos proporcionam.

Nossas tragédias pessoais não se resumem somente em conviver com um parente chato. No mesmo lugar que nascem os heróis, nascem os vilões. Sendo o útero da sociedade, a família gera tanto um quanto o outro, ambos tem o mesmo poder, o poder de se reproduzirem em outras famílias sendo eles mesmos sua célula matriz. Daí o valor do dito iídiche que compara e propõe entender a família por meio das tragédias sofridas ou geradas por ela.

Creio que as “drogas” se tornaram a maior de todas as tragédias familiares. Quando me refiro a elas não seleciono qual delas é mais nociva; para mim todas as drogas são nocivas; as “mais leves” despertam à curiosidade e à experimentação de outras “mais pesadas”. Os governos já não tem mais controle do estado de sítio que se estabeleceu no País por conta do tráfico de drogas. A Organização Mundial de Saúde – OMS – classificou a dependência de drogas como doença mental ou transtorno psicoemocional5, tratando o droga-dito6 como um enfermo mental. Tola noção do que são as “drogas” e quais são as consequências dela. Essa tragédia global e contemporânea, não escolhe classe social, nem nível intelectual, nem segmento religioso ou classe política. Ela atinge a todos direta e indistintamente.

Ao afirmar que “a droga” é a tragédia secular que aflige e destrói as famílias da terra, não me arvoro a oferecer sequer uma solução. As soluções, sócio religiosas são paliativas, porque tratam somente das questões sintomáticas da “droga”; digo sintomáticas, por entender que “usar droga” não é o problema em si, apesar da prática ser a causadora das tragédias familiares. Não vejo no momento presente, ninguém com capacidade para quebrar os paradigmas já estabelecidos pela OMS para o enfrentamento dessa tragédia. Nem pessoas, nem instituições parecem entender os motivos que levam um familiar a “usar droga”. Particularmente creio que a questão original está dentro da família – a célula-máter da sociedade 7. Não há família sem tragédia, e também não há tragédia sem família. Onde existir uma família, existe um estado de tragédia potencial; onde ocorrer uma tragédia, existe uma família envolvida.

Nos dias de hoje, a falta de tolerância doméstica é comportamento comum dentro dos lares. Essa falta de tolerância com o outro familiar “errado”, aos olhos do intransigente, gera em si o desejo de exterminar aquele “outro ruim”. É nesse momento e por esse motivo, que os assassinatos familiares ocorrem. Nunca em uma década, tantos filhos indefesos foram assassinados por seus parentes, fossem eles pais biológicos ou não. Nunca em uma década tanta violência de parentes contra parentes estampou as manchetes dos noticiários. As “casas” alicerçadas sobre a areia das relações temporárias, regidas pelas necessidades do prazer físico, ou pelo medo da solidão, estão desmoronando. As “casas” construídas sobre a areia de um individualismo arrogante e cruel, gerado no poder de comprar aquilo que os olhos desejam 8, estão caindo. As “casas” feitas com a areia dos agrados físicos dos presentes caros, ao invés do carinho afetuoso do simples abraço, estão se desfazendo ao sopro do vento9. E como está sendo doloroso ver essa terrível e trágica profecia se cumprir.

Infelizmente, nem com essa visão dantesca as “outras” famílias se fortalecem, pelo contrário elas se esfacelam, se dissipam, se destroem por não terem raiz em si mesmas. As tragédias que julgamos tão distantes de nós precisam ser conceitualmente, trazidas para perto, para dentro, endorcisadas. A noção de que “aquilo” também pode acontecer “aqui”, precisa ser vivenciada para que possamos descobrir o que causou “aquela” tragédia, e impedir que pelas mesmas razões ela se manifeste “aqui”, em nossa família.

Mas a família é abençoada pela tragédia, seja suportando e/ou entendendo o estado de tragédia de um “outro” familiar, seja pela desgraça de ter esse membro arrancado de nós. Seja como for, a família sempre será a origem e o objetivo de uma tragédia. Para entender como as tragédias podem nos abençoar precisamos ouvir, refletir e praticar o primeiro mandamento da Espiritualidade: “... ama teu próximo como a ti mesmo” 10. Esse é o mandamento universal. Porem escrito com as nossas letras ocidentais, muitas vezes nada significa; se muito, esse mandamento vira somente um bom sermão em épocas de desavença nas congregações. Porém a escrita hebraica em sua sacralidade dá o verdadeiro tom melódico ao dito.



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Notas – Tragédia.
1. Nilton Bonder, Fronteiras da Inteligência, Senso de Bondade. p.85.
2. Catarse é uma forma de tratamento psicanalítico que estimula a liberação de pensamentos e emoções que estavam reprimidos no inconsciente, provocando certo alívio emocional.
3. Gênesis 1:22.
4. Provérbios 25:24.
5. Segundo o relatório “Neurociências: consumo e dependência de substâncias psicoativas” - OMS; ISBN 92.4.859124.8.
6. Termo usado pelos especialistas. Vem de: droga + adicto = pessoa viciada em droga – droga-dito.
7. Definição de família da antiga matéria “Moral e Cívica”.
8. I João 2:16.
9. Mateus 7:26-27.
10. Levíticos 19:18.

Abreviações
BACF - Bíblia Almeida Corrigida e Fiel; BJC - Bíblia Judaica Completa; BH - Bíblia Hebraica; BNVI - Bíblia Nova Versão Internacional; ES - Escrituras Sagradas; BEP - Bíblia Edição Pastoral


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